terça-feira, 31 de julho de 2012

COMO DEUS CHAMA




Deus não é uma ‘pessoa’ comum - feita à nossa imagem e semelhança. Presente em tudo, ele não age em nós como simples ‘causalidade’. Nem cabe a Deus a tarefa de ‘chamar’. Se, de alguma forma, ele chama, sua voz é a ‘natureza’ com suas leis, é a ‘cultura’ em suas expressões, como ainda é – e sobretudo - o ‘senso social’ das pessoas de fé, quando sensíveis ao complexo tecido de suas ‘relações’.

Um suposto chamado de ‘Deus’ não se restringe a ‘indivíduos’ e a ‘autoridades’. Deus, entrelaçado com o todo do universo e da história humana, se irradia em/por todos os condicionantes da realidade e nas circunstâncias que envolvem a convivência neste mundo, na Igreja.

O chamado de Deus nunca é isolado nem direto, uma vez que ele é a fonte e o sustento do tecido cósmico das ‘relações’. Seu chamado é como o viço da planta favorecida por terra boa,  por chuva oportuna e pelo calor benfazejo do sol, como também pela claridade do dia e pela escuridão  da noite. Nesse sentido, não há ‘vocação’ sem qualidades adequadas do servidor e sem circunstâncias favoráveis por parte de quem se faz vocacionado.

Razão pela qual, facilmente ocorre um equívoco ou mistificação, podendo o pretenso ‘chamado’ ser usurpador da vocação por simples ânsia  de poder ou até por medo de incapacidade de auto-determinar-se em seu contexto. Nesse sentido, o indivíduo passa a ser refém de um desequilíbrio, vítima do medo existencial ou até fugitivo de uma responsabilidade que realmente lhe cabe.

Em vez de Deus ‘chamar’, é a própria pessoa que, quando insegura, se atribui, em forma de projeção e até de medo, o pretenso chamado. Nessa perspectiva, os chamados são, antes, usurpadores do poder do que leais prestadores de serviço. São até ameaça ao bem comum ou déspotas.

Não há, de um lado, o Deus que chama e, do outro, a pessoa subjugada. O que, de fato, há é o Deus ‘inserido’ no cerne de tudo e todos e, por outro lado, os que - responsável ou imaturamente – assumem a incumbência de uma missão em benefício de terceiros. Nunca é Deus que, de fora, decide chamar, mas sempre são as pessoas, que, imaturas ou adultas, decidem assumir um serviço fraterno por motivos, pretensa ou realmente ligados a Deus, em benefício de outros.

Tampouco há ‘plano’ - por Deus ser ‘salvação’, vida de qualidade - que nos envolve no sentido de que todos já desfrutam de sua riqueza. Quem serve ao bem-estar de outros, em qualquer setor, segundo o testemunho de Jesus, em benefício da comunidade, considere-se pessoa ‘chamada’ por Deus, embora seja ela mesma que, por doação, se dispõe corretamente a esse ou àquele serviço.

Todo ‘vocacionado’ é o que é à medida que, sem apropriação indébita, decide - pessoal e socialmente movido - prestar serviços a terceiros. Supõe-se que, previamente, tenha auscultado ‘sinais’ da realidade e, por eles tocado, decide investir seus dons, seu tempo, sua vida a fim de promover o bem comum, sempre em proveito da convivência. Todo vocacionado, portanto, tem por missão ser ‘fator de acréscimo’, em um clima de autonomia e colaboração, como generosa doação.

Deus será bem servido graças ao crescente bem-estar de pessoas, à melhoria da convivência, sempre em um clima de liberdade e diálogo. Promove-se, dessa forma, o crescimento de quem serve à boa realização dos que são beneficiados por um serviço promocional e libertador, desde que contem com a aprovação da comunidade eclesial.

DIÁLOGO COMIGO




“Se é verdade que a cada dia basta sua carga”, por que então teimo em carregar para o dia seguinte minhas mágoas e dores? Apego-me ao sofrimento, ao ressentimento, sabendo-os inúteis, mas teimo em não jogá-los fora. Como me apego a essas coisinhas que guardo em gavetas interiores!

Vivo com o lixo da existência, quando tudo seria mais claro e límpido,  com o coração renovado e em paz e bem mais fecundo. Detenho marcas e cicatrizes para me lembrar de tanto que me pesa e me deixo machucar. Por que, para que? Não inventaram ainda uma cirurgia plástica da alma para tirar todas essas vivências e me deixar como novo, livre por dentro.

Ainda bem... Não me hei de esquecer de meu passado, de onde vim, do que fiz, dos caminhos que percorri. Não me hei de apegar ao sofrimento, ao ressentimento, sabendo-os inúteis, mas ainda me falta bom senso de jogá-los fora. Como me apego a essas coisinhas que guardo em minhas gavetas. Vivo com o lixo da existência, quando tudo seria mais límpido,  caso eu decidisse viver com o coração renovado.

Marcas e cicatrizes ficam para me lembrar da vida, do que fui, do que fiz ou deixei de empreender e do que não evitei. Não é que me devo esquecer de meu passado e de suas agruras, de tudo que realizei, dos caminhos que percorri. Menos ainda das labutas que travei e das pessoas que encontrei. Tantos me inspiraram, outros me testaram, muitas vezes sem saber. O que não posso é carregar dia-a-dia, com teimosia, rancor, mágoas, sentimento de frustração e ressentimento.

Eu sei..., perdoar a quem me feriu dói mais que minha rejeição. Mágoas envelhecidas transparecem no rosto,  em meus atos e moldam minha existência. Eu não preciso mais disso, isso não me traz nenhum benefício. E quando só ficarem a lembrança das alegrias, do bem que me fizeram - das rosas secas, mas carregadas de amor - mais espaço haverá para novas experiências, novos encontros.

Serão mais leves, mais fáceis, mais ricos e inovadores. De coração aberto e sorridente me tornarei mais bonito e atraente e outras coisas boas – tantas! - começarão a acontecer. Eu sou único, minha vida é única: luz que atrai, beleza que encanta. Minha vida merece que, a cada dia, eu lhe dê uma chance para que ela seja plena e eu, feliz, ajude outros a amadurecer”.

MORTE: A VIDA É ESTA



Se Deus é AMOR, nele, esse amor há de ser insondável: totalmente ‘outro'. Crer ou não crer nesse amor divino, isso não ameaça Deus. A razão é simples: nossa limitação humana nunca será capaz de ameaçar a soberana grandeza divina.

Ao olhar nos olhos de quem se gloria de crer em Deus, cabe a nós um sorriso amigável, movido por uma pitada de compaixão.A razão é simples: no máximo, a pessoa não sabe de que está falando e, no mínimo, pretende justificar-se.

Por estranho que pareça, uma singela fé em Deus requer uma dose de ‘ateísmo’, que há de ‘autenticar’ o amor, livrando-nos de toda cobrança.Crer na vida após a morte é algo pretensioso ou algo muito ingênuo.Pé no chão é viver tão bem ‘neste’ mundo - livre perante Deus –como se outra vida não houvesse. Sim, crer em ‘outra’ vida tem pouco sentido e até nos pode dificultar, no dia a dia, a prática do bem.

Crer ao máximo nesta vida presente, nos dispõe realmente a insuspeitas possibilidades. Esta é a sabedoria da feliz ‘descrença’. Aliás, já se observou: Só porque uma viagem, um dia, termina, não é razão de não empreendê-la. A ideia da morte é capaz de nos confraternizar em nobre pequenez com ternura.

Em nossa absoluta solidariedade frente à morte, o importante  é assumir o fato com o dinamismo do amor benfazejo a nos trazer tranquilidade. Esta é uma boa razão para se viver o amor ‘gratuitamente’. Havendo um ‘outro’ mundo, ele tem de ser construído também ‘aqui’.

Não é só ‘após’ a morte que somos ‘eternos’, mas desde agora. É o amor vivido no tempo, que dá valor ao nosso viver. A eternidade é ‘agora’ e, o que hoje fazemos dá valor ao tempo. Há no ser humano, e até mesmo no próprio corpo, uma potencialidade - um transcender a si mesmo. É a capacidade de situar o além no ‘aqui’.

Mais que viver a morte, somos chamados a viver ‘na’ morte. Quando lidamos com a vida, como se estivéssemos em plena paz com ela, já vivemos, aqui, no 'lado de lá'. Ao irmos além de nossos limites, assumindo-os com naturalidade, revelamos a ‘transcendência’ em nós.

É qual paixão de amor e de paz que nos invade. É a vida que, em um teste, nos eleva acima de nós mesmos e nos deixa admirados. Pode ser uma prefiguração da morte: em vez de ser um fechar de porta, será o abrir de um novo  horizonte.

De fato, na prática não se encontra em ‘agonias’ nenhum questionamento metafísico relativo ao ‘lado de lá’. Na vida, impregnados por algo que nos ultrapassa, não precisamos temer o ‘lado de lá’, sendo que ‘já’ o vivemos no ‘lado de cá’.

A transcendência do amor – Deus em nós – nos coloca confiantes diante da morte. A abertura do coração nos assegura que, no amor, algo novo nos é infundido. É o ‘lado de dentro’ em nós.
E haverá paz.