sexta-feira, 20 de abril de 2012

FAÍSCAS RELATIVAS À PÁSCOA


A LEI DO PLANTIO E DA COLHEITA

“Recentemente plantei alguns caroços de milho. Cresceram bem e me deram muitas espigas.  Separei um dos pés de milho que produziu duas lindas espigas. Contei os caroços de milho em cada espiga e descobri que, a primeira, havia 570 grãos e na segunda 748. De uma única semente, colhi 1.318 novos grãos. Assim funciona a Lei do Plantio e da Colheita”.
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Tudo supõe o ‘de onde’ ou ‘de que’ – uma origem ou causa – e essa, por sua vez, implica ‘gratuidade’ – algo ‘novo ou mais’ - no efeito. A causa, pois, é algo maior do que aparenta ser; isto é, ela tem em si o ‘transcendente’. Assim, o grão de trigo, ao cair na terra, produz algo diferente. Razão porque o ‘fim’ de si - a morte - pode ser algo mais que o ‘nada’. Eis o admirável em tudo que nos habita e nos cerca. Nós sabemos que somos de Deus. (1 João 5,19)

Conclusão: a morte, como fenômeno decisivo, é prestação de serviço, algo rico em sentido. Ou seja, até na morte há algo ‘sobrenatural’, isto é, algo ‘além de si’. De fato, a matéria do cosmos, ao nunca se alterar em seu peso global, já insinua que a morte não pode ser o decisivo, ou seja, é mais que só isso. A morte não reina. Impera, sim, no re-nascer, no permanecer, no ‘ex-istir’:  ser além de si. O morrer, no sentido de desfazer-se, o terminar definitivo, é algo que se contradiz. Em tudo há algo mais, o reviver, o supera-se; o ressuscitar é também natural, em sua dimensão de ‘mistério’.

Tal fenômeno se impõe como essencial à própria pulsação do Universo, o segredo de todo existente, dentro de limites - surpreende em seus efeitos. Portanto, crer na chamada ‘ressurreição’ parece razoável - potencialidade inesperada contida em todo existente. O modo de se comportar, a médio e longo prazo, pode favorecer ou prejudicar a existência. Exterminar os entes  é impossível, fazê-los existir em outras formas parece natural. De todo jeito, a morte está sempre a serviço da transformação, jamais da destruição definitiva. Donos não somos desse mistério; nós o vivenciamos, admiramos e compartilhamos.

Nada, portanto, se ‘desfaz’ simplesmente, mas tudo se transforma. Essa transformação não é algo fechado em si, mas está nas mãos de circunstantes. Certamente não para algo pior, mas sempre para algo diferente. É o que celebramos na Páscoa: o Cristo ressuscitado é o grande símbolo a representar o ‘divino’ na vida, cuja essência é um dinamismo transformador surpreendente, em que o igual é revestido do diferente. Isto, aliás, acontece desde o início da existência de tudo, que se apresenta no Universo.

Razão também porque a morte, por real que seja, está entregue ao poder da vida. O objetivo da celebração é nos conscientizar do algo ‘mais’, do divino em nós - a serviço do todo da Criação. Esta - em nós - respira e, de nós, dispõe para que Deus se afirme em nossa grandeza, partilhando seu ‘mistério’ que também é nosso. Páscoa é a grande festa dessa ‘gratuidade’ e da ‘responsabilidade’ do Cosmos, convidando-nos a colaborar para que a vida reine sem maiores obstáculos e com uma rica criatividade inovadora.

OPÇÃO PREFERENCIAL


Não raro, ‘pobres’ descobrem que o são, quando entram em contato com ‘ricos’. No passado, um povo de ‘escravos’ tomou consciência de sua condição, depois de conscientizado pela experiência de Moisés. Este sofreu rejeição e abandono e foi salvo das águas e da perseguição. Quando, sofredor, se viu espelhado no povo escravo, engajou-se a promover libertação dos excluídos. E eis que um grupo de escravos se tornou o ‘coração do povo de Deus’ – um Deus da libertação e do serviço (Ex. 3,7-10).

Sim, Deus nos quer fazer passar da servidão para o serviço. Estrangeiros e peregrinos, todos são chamados a viverem livres de dívidas. A terra é de todos e, nela, todos têm direito aos meios de - nela e dela - poder viver. O ‘Ano Sabático’ passou a dar descanso à terra, redistribuindo-a fora das relações de opressão. Ao longo do tempo, pois, a igualdade se ia desfazendo devido a guerras, roubo, catástrofes, enfermidades e, sobretudo pela prepotência no poder.

A urgência, no tempo de Moisés, era libertar as pessoas de um isolamento radical: sobretudo, viúvas, órfãos e estrangeiros, sendo a hospitalidade um dever sagrado (Dt 25,17-22). A instituição do Reinado se fez obstáculo a esse objetivo (1 Sam 8,14-18). Em uma sociedade fraterna, a propriedade tem alcance coletivo. O mesmo há de valer para uma Igreja; na hierarquia, os maiores se fazem servidores, para que todos sejam participantes ativos (Mt 20,26.28; Mc 10,43.45).

Um poder ‘centralizado’ se apodera dos bens, criando classes: oficiais, escribas, funcionários que passam a ser privilegiados e pagos. Razão pela qual os reis se apoderam dos bens, a fim de redistribuí-los ‘desigualmente’. (Algo assim acontece, hoje, entre clero e laicato em relações de poder e submissão.) Os profetas se encarregam de denunciar o desleixo do poder no trato com os pobres.

(Na Igreja – pela oposição entre clero e laicato - surgiram formas gritantes de exclusão.) A título de exemplo, Elias denuncia o crime de Nabot (1 R 21,1-29); depois, Amos denuncia as injustiças na Samaria  (Am 5,11-13), onde um povo explorado favorece a ganância dos ricos. Nessa linha, prosseguiu Jesus: o culto a Deus não consiste em ‘ritos exteriores e formais’, mas no amor que gera justiça, honestidade e solidariedade (Mt. 5,23s). Maltratar a pobreza, subjugar o povo é infidelidade à Aliança; a responsabilidade ‘social’ visa o bem das ‘pessoas’

Deus nunca se vinga nos ‘indivíduos’, como Jesus  lembra no caso do cego (Jo 9,2). Na prática, a salvação já não diz - genericamente - respeito à ‘nação’, mas aos indivíduos da nação ‘toda’. Estes merecem viver a fé em Deus no meio de um povo solidário e fraterno. No passado, a vigência da Sabedoria substituiu a missão profética; profetas foram substituídos por ‘mestres’ da lei e por ‘sábios’.

Jesus se tornou modelo, como Paulo lembra: rico, ele se fez pobre para nos enriquecer por sua pobreza (2 Cor 8,9). Não foi para ser servido que veio, mas para servir (Mc 10,45). Ninguém é feliz por ser pobre, mas quem se faz pobre; não é abençoado quem ‘é’ servido, mas quem ‘serve’ (Mc 10,45) (Lc 6,20-21) (cf Lc 1,52s; 4,18; 7,22; 14,21 (14.13); 16.22. (Contexto: cidades helenísticas.) (Em Mateus, o critério é sempre a atitude ‘ética’ (22,10).

Em seu todo, a Boa Nova não privilegia os que são pobres (Lc. 16,19-31; 19,1-
10). A conversão ao Evangelho não implica, necessariamente, uma dimensão econômica, mas uma nova avaliação dos bens: o bem de todos na comunidade (Atos 4,32). Prevalece a importância, não do ‘poder’, mas do serviço. O grande ‘desafio’ é colocar os bens a serviço de todos.  Sobretudo em Mateus, ricos e pobres têm de ser discípulos na escola de Cristo: ter alma de pobre, coração acolhedor, ter fome de justiça, ser artesão de paz, sofrer perseguição.(Mt 5,2-12).

A quem e a que devemos prestar mais atenção? Que lugares e rostos mais cuidado nos pedem? Há os que não contam muito, pois os ignoramos ou esquecemos. Dar-lhes atenção há de ser experiência de responsabilidade, de acolhimento e de encontros. Há pobres e inválidos em uma extrema precariedade, sem vida digna e sem condições de desenvolver capacidades latentes. São pessoas  sem perspectivas, que não contam, que dificilmente enxergamos e das quais nada se espera. Seu potencial de trabalho e de marcar presença tendem a desaparecer.  São encapsuladas por invisibilidade.

Podem até sucumbir a doença e morte, enquanto nós nos mantemos à distância. Assinalam um abismo sem fundo que cobrimos com nosso medo para, por eles, não sermos contagiados e incomodados, como se quisessem arrastar os que deles se aproximam. Não raro, nos deixamos intimidar por angústia, impotência e culpa, temendo horizontes desconhecidos e um desafio pesado demais. Ficamos distantes, nem ousamos abordá-los.

Porém, bastaria um pouco de coragem e uma ocasião de encontro para reconhecermos que, como nós, eles têm rosto, voz, dignidade, aspirações e esperança; enfim, uma história. Isto nos faria admitir que se trata simplesmente de irmãos nossos. Percebemos que não é tão difícil abrir espaço para eles. Nosso quadro de referência é limitado, frágil e inseguro. Espera-se de nós um passo de aproximação, um modo diferente de sentir e de avaliar, pois não se trata de uma ameaça de agressão.

É preciso evitar o jogo de ignorar para superar nossa indiferença, acolhendo o percurso do encontro, deixando-nos envolver pelas circunstâncias. Haverá uma ‘revelação recíproca’, em que cada um se assusta com as próprias reações, com a capacidade de se deixar conduzir pelo que se apresenta no momento. Haverá até leveza com riso. Trata-se de sinais que não enganam, conduzindo-nos a uma nova experiência convivência cristã. Tal aproximação impele os protagonistas ao diálogo, superando indiferença, resistências ou preconceitos.

Isto nos livra de  sofrimento, mostrando-se indispensável para vivermos bem e convivermos em clima de fraternidade. Por que aumentar tensões, cultivar distâncias, estreitar horizontes, resistindo a um gesto de ceder? Caso dermos conta de relativizar obstáculos, conquistaremos confiança, trocando fragmentos de história entre nós, suavizando laços dolorosos. Assim, lançamos o fundamento de uma aproximação integradora e solidária.

Passamos a partilhar sentimentos reprimidos, substituindo dores, resistências e tristezas por simpatia, solidariedade, amizade. Transporemos abismos, cultivaremos presença, voltaremos a falar e a decidir juntos, ajudando-nos na construção de um novo projeto. Assim, priorizaremos o outro,  sem nos fechar ou isolar em um objetivo ‘pessoal’. Somos, então, sensibilizados pelo que é prioritário na relação. Quem sabe, é nessa perspectiva que somos convidados a avaliar a proposta da vivência crista: opção preferencial pelos pobres e excluídos.

Nessa categoria cabem muitos, seja no âmbito da vida social e da prática da fé.  Primeiro, os ‘sem’ meios de uma sobrevivência digna e de uma cidadania justa; segundo, os que não se enquadram nos critérios da moral burguesa:  homossexuais – casados ou não - descasados e recasados, criminosos, vítimas de preconceitos, mulheres, etc. Terceiro, os discriminados na religião: sacerdotes celibatários, padres casados, mulheres em geral. Em clima de aliança, somos intimados para alcançar o que liberta e libertar e lutar por uma coletividade fraterna e participativa. A Igreja de Cristo é a Igreja do ‘povo’.
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Frei Cláudio van Balen

(Fonte:Ph.Demeestère,J´ai vu la misère de mon peuple,
CHRISTUS– avril 2012, pp 177-186)