quinta-feira, 1 de março de 2012

Dialogando com Deus

Se o sentimento é a linguagem da alma, Deus é a pele de minha emoção. A todo momento, ele me testa no confronto com tudo e todos que me envolvem. Sinto uma presença amiga que sorri para mim e me questiona, me confirma e zomba amigavelmente de mim. Deus... Eu é que não o sou; é ele que treme na superfície e no íntimo de tudo que passo e sinto, avalio e realizo. Sim, é Deus, em mim, que aprecia, elogia e relativiza o tanto que já fiz ou deixei de fazer. Até parece que ele é a sombra de mim, meu respirar em que o sinto reproduzido.

Sua luz aparece no que há de nobre em mim e no que, às vezes, avalio como ridículo. Parece que sou algo de Deus que, volta e meia, ri de si e foge de mim. Outras vezes, ele se sufoca em mim, ri de si para me convencer que estou a serviço dele para – desamparado - incluir outros em seu abraço, a fim de acolhe-los, valorizá-los e entusiasmá-los.

Sem nada fazer – assim me parece – tropeço em Deus e, sob gargalhadas, ele me faz sentir meu valor, minhas limitações, meu lado paradoxal. Sem o perceber, me vejo sorrindo e sinto um afago seu, mostrando o quanto ainda sou o que não devia ser. Aí, olho para outros, pisco para Deus e lhe murmuro o quanto ele ainda perde tempo com pessoas como eu.

Só me resta perguntar: Será que eu sou eu mesmo e será que Deus é, de fato, o que é? Não raro, me sinto em um tipo de circo, onde há perda de tempo. Mas aí vem outra pergunta: Será que eu ainda não aprendi a brincar? Vai ver que o Reino é dos que cultivam jocosidade. Este tem tudo a ver com sentimento e experiência que, por sua vez, usam a palavra como invólucro, qual casquinha. O fruto mesmo é a experiência, o sentimento.

Verdade é um esforço de tomar posse de si em uma realidade complexa. Ela gera em nós o respeito pela diversidade, o que – por sua vez – nos conserva em harmonia com o meio.Verdade implica a capacidade de diálogo para dentro e para fora de si, em clima de atenção e paz.

A verdade nos confere a posse de nós mesmos e abre espaço para termos acesso aos outros. Ela reduz o autocentrismo e acresce a receptividade diante dos desafios do diferente. A verdade é nunca unilateral e monopolizadora. Ela é braço estendido à alteridade. É guerreira, é puro confronto que nunca se dá por satisfeito, porque sua fome é insaciável.

Verdadeira é a pessoa que nunca se reconhece dona da verdade, por mais que a abrace. Por isso, ela questiona, busca, litigia, reformula, nunca se faz ponto final, é sorvedouro insaciável. A verdade é sopro sem arcabouço.
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Frei Claudio van Balen

JEJUM

Q U A R E S M A

JEJUAR

DISCIPLINAR O CORPO É CUIDAR DO ESPÍRITO

INTRODUÇÃO
Por longos séculos, reinou um dualismo amargo na tradição cristã, considerando corpo e alma concorrentes. Herança infeliz de Platão, transmitida por teólogos. Como resultado herdamos práticas e hábitos de imposições e renúncias, de privações e castigos com menosprezo para corpo e sexualidade. Vida espiritual era algo oposto ao material - semente do mal. Quantas aberrações com frutos amargos neste medo do corpo, o que causava cãibra interior a castrar o impulso vital. Toda forma de gozo era malvisto e não convinha a uma modalidade espiritual de viver. O jejum, simples dever, servia mais para reprimir o corpo do que para elevar o espírito. Ameaçava-se a saúde, continha-se o espírito; distanciava da terra, alienava do céu. (Perigos: prestígio, vaidade, poder, ostentação...) (Quarenta hs- sec.16, Itália...)

SER CORPO
Jejum valoriza o corpo. Quem se assume na própria condição corporal, é capaz de desenvolver-se como pessoa. Tal atitude implica um equilíbrio que, na medida adequada, valoriza os dons corporais, sem se escravizar a eles e sem usá-los em prejuízo para si e para terceiros. Nesse sentido, o gozo mais profundo carece, sempre, da medida certa. Desprezo e fruição exagerada desumanizam, pois dificultam ou impossibilitam a abertura frente à realidade global do viver. Em uma perspectiva ecológica, longe do dualismo com sua oposição, o corpo é a base da vida espiritual; força magnética a unir exterior ao interior, material a espiritual. Mais do que ter ‘irmão burro’, eu sou meu corpo, com integração e harmonia entre imanente e transcendente. (Jesus: Mt 6,17s; Mc 2,19s; Atos 13,2...)

BOM CUIDADO

O jejum, bem praticado, serve para purificar os intestinos, o sangue e os líquidos corporais, o que possibilita participar de modo mais intenso da vida. Tradicionalmente se recorre também a banhos, movimentos corporais, esporte, ginástica, água, chás de ervas, drenagem linfática, massagem, meditação, celebrações, diálogos, etc. O resultado é leveza e equilíbrio corporais e vitalização de energias espirituais com maior liberdade e lucidez, o que possibilita profundidade de viver, expondo a pessoa à luz interior e exterior. O que os olhos são para a realidade exterior, o jejum o é para a vida interior (Gandhi). O jejum faz respeitar direitos e limites do corpo, em sua missão. Quem maltrata o corpo – por recusa ou sobrecarga - deturpa relações e foge de si mesmo e, portanto, dos outros.

OBJETIVO

Desde a mais longínqua antiguidade, o jejum sempre foi avaliado, praticado e institucionalizado como instrumento eficaz para equilibrar o corpo, purificando o espírito. Variavam as motivações das práticas do jejum, chegando a ser ambivalentes entre aperfeiçoar o equilíbrio, expiar culpa, aplacando - como penitência - a ira divina e aprofundando a solidariedade com os pobres. Por muito tempo, a prática do jejum foi objeto de imposição - dever sob pena de pecado- sendo o corpo visto como algo perigoso e hostil. O jejum se presta peculiarmente para cultivar tanto interioridade com exterioridade, promovendo energia espiritual para vida com boa qualidade. (Preparação, expiação, proteção, contemplação...)

SOLIDARIEDADE

O jejum educa para um modo menos poluído de lidar com a natureza - que somos. Ajuda para se equilibrar o impulso de exercer simples domínio para, mais solto, autônomo e solidário, confiar-se ao dinamismo da própria vida. Por autocontrole e abertura, é saudável tomar distância de uma postura consumista, exercitando-se no gesto de adiar desejos e esperar. Isto suscita senso de dádiva com gratidão e estimula partilha fraterna, solidarizando com os que passam carência em um contexto de pobreza. O exercício de jejuar, além de efeitos preventivos e curativos, se faz também protesto contra um mercantilismo que escraviza, criando uma multiforme dependência.

INTUIÇÃO BÁSICA

Graças ao jejum, conscientemente abraçado, o diafragma se abre, facilitando um novo modo de sentir, de cheirar, de ver e de se relacionar. Torna-se mais autêntica e mais plena a fruição, aumentando o prazer de comer e beber, de crer e orar, de silenciar e conviver. E nesse seu modo renovado de ser, a pessoa se apropria da intuição básica de que se harmonizam, a serviço do todo, luz e escuridão, maré-cheia e maré baixa, abundância e privação, alegria e dor, vitória e frustração, aprovação e desacordo, proximidade e distância, interioridade e exterioridade. Tal sabedoria gera bom senso, jovialidade, esperança, criatividade e um élan vital imbatível a serviço do prazer sem a servidão do consumismo. Trata-se da inteligência corporal, mais importante que a emocional, porque, aguçando os sentidos, se faz fundamento de outras formas de inteligência.

LIBERTAÇÃO

Ao praticar o jejum, somos convidados a nos deixar carregar por uma força interior que integra, solidariza, pacifica e alegra. Sintoma do bem viver, o jejum é uma ponte segura para o encontro consigo, com a vida, com o próximo, envolvidos pelo mistério maior que é Deus. Este nos quer ver como filhos e amigos prazerosos. É no prazer que está a plena realização do viver. Ora, o fundamento do prazer está ancorado no corporal: a alegria de provar, de sentir, de saborear no conviver. O prazer de viver se faz penhor de alegria. Aqui, se encontra uma força libertadora que, qual vaso comunicante, conduz seus efeitos positivos para outros setores.

RUMO À LUZ

Nunca houve tantas formas disponíveis de prazer, na área de arte e música, de literatura e espiritualidade, de escultura e dança, através de imagens em TV, vídeo, DVD e internet, etc. Há um leque inesgotável de possibilidades. Quem sabe, em um futuro próximo, comer e beber já não precisarão tanto de consumismo. Por outro lado, a sobriedade sempre há de estar a serviço do prazer. Quem aprendeu a fruir bem, se torna pessoa aprazível. Jejuar lembra: nosso destino é sermos pessoas aprazíveis, para nós mesmos e para outros. Só dessa maneira podemos estar abertos para o que temos de ser, receber e fazer, na vida que levamos. Jejuar se faz caminho para luminosidade, para vitalidade de corpo e mente em boa convivência e na alegria da fé. Eis alguns aspectos valiosos de nossa Quaresma.
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Frei Claudio van Balen