sábado, 7 de abril de 2012

FÉ NA RESSURREIÇÃO

Ninguém crê sem alguma dúvida que visa aprofundar a fé. Não há exceção. È preciso ver para crer. Sem algum sinal, não é possível consolidar relações, sobretudo as de fé. A razão é simples. Não se trata de crer em ‘coisas’, mas em ‘pessoas’. O núcleo da fé não é uma verdade teórica, mas uma relação de carne e osso a envolver eternos iniciantes. Ali, navegamos nas águas turbulentas da limitação humana frente a perdas e decepções, em ensaios com recuos e avanços. Em Deus vivemos. Abrigados nele venceremos.

“Feliz quem crê sem ver”. Em termos. Crer é sair de si, ampliando os próprios horizontes. Requer-se um impulso que nos mobilize, uma segurança que nos encoraje. Entre nós, a ‘gratuidade’ – mesmo o amor de mãe – precisa revestir-se de algum sinal a nos confirmar. Não se ousa fazer, no escuro, um gesto de entrega, unindo vidas, conjugando interesses e entrelaçando pessoas. Nada mais natural: “Se eu não puder perceber o que mais marca a pessoa, como poderei crer?”. Deus é carne e osso, fragilidade e pujança na História.

Tomé representa os discípulos. Quem sabe, ele era o mais realista. O Mestre, o Amigo do peito, morreu. A turbulência de emoções empurra todos para um esconderijo. Decepcionados e tristes, sentem raiva das autoridades que não quiseram compreender Jesus e o rejeitaram como rebelde suspeito. Agora, os discípulos temem ser ridicularizados. Além do mais, sentem vergonha de seu próprio comportamento. Mostraram-se covardes. Nos sinais, o aplaudiam. No julgamento e na cruz, o abandonaram. O que lhes restará? O confronto com as chagas, o compromisso solidário. Eis o sinal da vitória.

Quando outros nos tornam a vida ameaçadora, fica mais difícil querer bem às pessoas e crer em Deus. Há situações que nos causam vergonha. Preferimos subtrair-nos ao convívio enquanto a decepção e a dúvida nos vão corroendo. Fechados em nós mesmos, trancamos as portas. Quando nos permitimos a tarefa de reavaliar as coisas, lentamente nos desarmamos. Foi o que aconteceu. As mulheres foram mão na roda. “Chega de tristeza! A morte não anulou Jesus!” Um dos nossos, ele ensaiou e representou Deus entre nós!

Um processo se iniciou. O Jesus idealizado - irreal - cedeu lugar ao Jesus real - com chagas - atestando seu devotamento frente ao Pai e a favor das pessoas. Alguém, assim, não é absorvido pela morte. O testemunho de vida – com lições e gestos com grande poder de convicção – tornam Jesus mais vivo que nunca. O sentimento de culpa se evapora sob a chama do amor que o Mestre lhes oferecera. A paz retorna. A coragem se restaura. A mesquinhez se desintegra. A morte... Ora, a morte bem sofrida é garantia de vida vitoriosa.

A dúvida serve para aproximá-los da realidade. Sua pequenez humana se faz ponte de acesso ao grande mistério. Morto o Mestre - o Amigo está mais vivo que nunca. O entusiasmo se renova. Ao tocarem na ferida, rememorando sua solidariedade ímpar, sentem-se redimidos. Uma liberdade estranha toma conta de seus corações. O Espírito de Jesus se instala nos discípulos, com clareza e vigor incomuns. O conjunto da caminhada de Jesus, seu testemunho de vida lançam nova luz sobre a frágil vida humana. Mais que nunca, se reconhecem abrigados no amor divino. Agora, são mais, muito mais que parecem. Estão a serviço da reconciliação e da paz. Testemunhas da Vida.


Deus: mistério da Vida a se fragmentar na criação; nela e por ela, se afirma, sofrendo a dinâmica da mesma que é ele em pessoa. Revela-se como Deus à medida que a criação evolui e as pessoas assumem a vida em uma perspectiva de fé. Deus sempre está no comando, porém sem interferir nem organizar previamente a história nem para socorrê-la milagrosamente.


Basta que seja Deus. Não vos perturbeis. Confiai!


Morte é Passagem.

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TOLERÂNCIA

TOLERÂNCIA – VALOR MAIOR

Tolerância autêntica é pacificadora.
O apelo à tolerância, não raro, conduz à intolerância.


O ‘eu’ moderno com seu direito de ser o que ‘é,’ graças à tolerância, facilmente se torna fator de abuso, até para sua expressão coletiva em grupos, partidos, igrejas. O ideal é enfocar o ser humano como ‘imagem de Deus’, a fim de ser menos ‘eu’ - menos egocêntrico e mais pacificador na construção de relações.

INTOLERÂNCIA COMO RESULTADO DE TOLERÂNCIA.
O apelo à tolerância resultou da crueldade da violência em conflitos religiosos entre mil e seiscentos e mil e setecentos. Cada um devia ter o direito de professar a religião herdada ou escolhida. Trata-se de um dever difícil em uma convivência multicultural e, sobretudo, de pluralidade religiosa, porém evita agressões mútuas. No passado, a duras penas, a‘lei’ passou a garantir liberdade de religião.

Quem a desrespeitar, será apresentado ao juiz. A base do estado liberal é que a democracia respeita, cada vez mais, os direitos dos cidadãos. Estranho é que isto ameaça a tolerância. Daí, as iniciativas para garantir direitos de mulher e homossexuais, de idosos e enfermos, de consumidores, crianças, artistas e animais. Isso, não raro, é acompanhado de desrespeito e agressividade. O apelo à tolerância se reveste, com frequência, de intolerância. Faz lembrar o ditado antigo: “Se quiser paz, se prepare para a guerra”.

Não basta um sentimento de tolerância; requer-se um reconhecimento positivo de pessoas e valores. Se como ‘imagem de Deus’, merecíamos, em alguma época, todo respeito, atualmente precisamos merecer tal direito pelo que mostramos ‘ser’ – gente digna: pensar e decidir com respeito ao que cada um se propõe, sem exigências e influências de fora. Agir, em clima de simples ‘direitos’, não raro tem suscitado sentimentos e ações agressivos. Grupos se defendem, outros os socorrem em vista de um objetivo correto, através de uma luta política. Tolerância tem assumido formas de intolerância.

Por outro lado, ninguém se satisfaz de ser somente ‘tolerado’ por outros; desejamos ser positivamente ‘reconhecidos’, mesmo cometendo algum erro. Antigamente éramos aceitos - em teoria - como criados ‘à imagem de Deus’. É o que devia garantir nossa dignidade. Na modernidade, cada um havia de conquistá-la por - fiel a si - pensar e agir com autenticidade e independência, sem escravizar-se a fatores externos. Atualmente diferenças são melhor valorizadas. Cada um é único e singular, tendo de respeitar tal direito nos outros.

Agora, sou eu que dou formato a meu viver, porém, nem por isso, é uma forma ideal ou melhor. Se, na essência, somos iguais, na existência nos mostramos diferentes. A boa qualidade de meu viver é medida pelo valor das relações que construo, pelo modo como trato o meio. A ‘identidade’ não é algo dado, mas se forma em diálogo com outros e pela inserção na realidade. Reconhecimento da própria identidade por outros é decisivo para o desenvolvimento do verdadeiro ‘eu’. A base de tal reconhecimento é, por sua vez, meu comportamento pessoal, mais do que, como antes, a posição social.

Atualmente, graças ao poder de ‘leis’, o reconhecimento é tanto mais importante. A recusa do mesmo fere gravemente as pessoas, como mulheres, crianças, negros, homo´s e deficientes. É algo como opressão e intolerância. Por mais que as pessoas – únicas - continuem diferentes, há fatores que valorizam todos, sem distinção. Tais fatores reclamam nosso respeito. Mais do que simplesmente nos tolerar – tolerância como dever ‘legal’ é pouco - temos de nos respeitar, honrar e até apoiar. Tampouco é suficiente uma simples tolerância - fruto de nosso ego adulto - como mérito pessoal. Porém, mais do que mero fruto de um direito, tolerância há de ser uma ‘dádiva’; do contrário passa a ser algo insuficiente, inautêntico. Até pessoas que dificultam a vida alheia merecem tolerância. Se devemos aprender a perdoar outros, para com nós mesmos temos de ter paciência nas falhas que cometemos. De fato, tolerância tem tudo a ver com a capacidade de ‘perdoar’ outros e a si mesmo.

Já, no século 16, Erasmo dizia a Lutero: A tarefa de sábios não é discutir, mas repartir sabedoria, partilhando a palavra. Tolerância é mais do que um direito ou dever, mais que um meio em vista de algo diferente. Acima de tudo, tolerância é própria dos ‘amantes da paz’. É uma virtude. Porém, o que me faz amante da paz? O ‘eu’ não há de ser sua própria medida; ou seja, o eu não é referência de aprovar ou desaprovar o que ‘o outro’ há de ser. Evidente, há pessoas incapazes de boa convivência. Em tais casos, a ordem ‘jurídica’ há de intervir e medidas devem ser tomadas. Como exemplo, temos a invasão de um país por outro com dominação ampliada, e também terroristas suicidas ou incendiários e agentes poluidores. Nesses casos não cabe intervir pessoalmente. Não me posso fazer medida de mim, reduzindo o outro à ideia ou à medida que me convém - do que eu aprovo segundo meus conceitos, minha verdade, minha família, minha religião, minha igreja – meus valores ou visão de vida.

Para me tornar amante da paz, é claro que tenho de conter meu pequeno ‘eu’; e, ao me esvaziar de mim, me faço mais aberto à realidade, mais receptivo frente ao outro, aos ‘diferentes’. Compete a mim olhar ao redor, sem logo exclamar: ‘Que beleza!’ ou ‘É crime!’ Só dessa forma, me protejo contra julgamentos apressados e parciais – e, portanto, contra intolerância. Farei bem por me inspirar na verdade de que Deus faz o sol surgir sobre bons e maus. O mesmo, me cabe, seguindo Jesus: oferecer uma nova orientação aos que vão ao extremo. É preciso me convencer que nem sempre disponho de uma reação adequada. Isto, de fato, é o início do amor à paz.

Longo pode ser o caminho para, dessa maneira, soltar-me de mim. Nossa fé cristã, em tempo de Páscoa, nos pode inspirar. Jesus precisou cair de joelhos, esvaziar-se de si, abraçando a morte na cruz. Por isso – lembra São Paulo – Deus o exaltou para que, em nome dele, todo joelho se dobre. Segundo Nietsche, Zaratustra falou: “Inicia como um camelo: paciente animal de carga, a socializar-te na própria cultura. Transforma-te, assim, em um leão: de tudo que aprendeste como camelo, toma uma distância crítica, superando o que já não queres aceitar por não corresponder a teus desejos e ao que não desejas para outros. Dessa forma, passas a criar teu próprio mundo e, juntamente com outros, quem sabe, ‘nosso’ próprio mundo. Isto implica algo conflitante e nada fácil: dar a si mesmo o direito de criar ‘novos valores’.

Simplesmente limitar-se a protestos, isso ainda não é heróico nem saudável ou construtivo; não passa de intolerância. Quando o leão chega a concluir esta verdade, se inicia a transformação em criança. Se não vos transformardes em criança, não herdareis o Reino do Céu. Supera-se o rancor contra o mundo e si mesmo, e sela-se a paz com a vida. Reconhece-se que até o sofrimento, que fazia desvalorizar a convivência, pertence ao coração da vida. Nenhuma forma de sofrimento justifica condenar o mundo. A criança em nós provoca um sim a tudo que nos tem acontecido; e reconhecemos: ‘Eu tenho batalhado a fim de, um dia, possuir um coração acolhedor e ter as mãos livres para abençoar’.

O papel do ‘eu’ amadurece em um modo de ser, inerente à essência da tradição religiosa. E eis que – em vez de relativizar verdades – crescemos em uma abertura respeitosa frente ao mundo, tornando-nos capazes de uma amorosidade de paz e de proveitosos cuidados em prol de outros. Apropriamo-nos de uma nova e sólida perspectiva que sintoniza nossa vivência do mundo com uma visão mais clara, tanto da realidade como da vida interior. Enfim, somente quando nos esvaziamos de nossa pequenez - deixando o divino renascer e evoluir em nós – liberta-se a ‘imagem de Deus’ em nós. Torna-se, então, possível de adotarmos amorosidade, gentileza e disponibilidade amiga. Se tolerância ainda não é pacificação, pacificação é sempre tolerância.
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(Fonte:Ilse N. Bulhof, Ware tolerantie is vredelievend,
em SPELING, 2/96, pp 21-26)