Não raro, ‘pobres’ descobrem que o são, quando entram em contato com ‘ricos’.
No passado, um povo de ‘escravos’ tomou consciência de sua condição, depois de
conscientizado pela experiência de Moisés. Este sofreu rejeição e abandono e foi
salvo das águas e da perseguição. Quando, sofredor, se viu espelhado no povo
escravo, engajou-se a promover libertação dos excluídos. E eis que um grupo de
escravos se tornou o ‘coração do povo de Deus’ – um Deus da libertação e do serviço (Ex. 3,7-10).
Sim, Deus nos quer fazer passar da servidão para o serviço. Estrangeiros
e peregrinos, todos são chamados a
viverem livres de dívidas. A terra é de todos e, nela, todos têm direito aos
meios de - nela e dela - poder viver. O ‘Ano Sabático’ passou a dar descanso à
terra, redistribuindo-a fora das relações de opressão. Ao longo do tempo, pois, a igualdade se ia desfazendo devido a guerras, roubo, catástrofes,
enfermidades e, sobretudo pela prepotência no poder.
A urgência, no tempo de Moisés, era libertar as pessoas de um isolamento
radical: sobretudo, viúvas, órfãos e
estrangeiros, sendo a hospitalidade um dever sagrado (Dt 25,17-22). A
instituição do Reinado se fez
obstáculo a esse objetivo (1 Sam 8,14-18). Em uma sociedade fraterna, a
propriedade tem alcance coletivo. O
mesmo há de valer para uma Igreja; na hierarquia, os maiores se fazem
servidores, para que todos sejam participantes ativos (Mt 20,26.28; Mc
10,43.45).
Um poder ‘centralizado’ se apodera dos bens, criando classes: oficiais,
escribas, funcionários que passam a ser privilegiados e pagos. Razão pela qual
os reis se apoderam dos bens, a fim de redistribuí-los ‘desigualmente’. (Algo
assim acontece, hoje, entre clero e laicato em relações de poder e submissão.) Os
profetas se encarregam de denunciar o desleixo do poder no trato com os pobres.
(Na Igreja – pela oposição entre clero e laicato - surgiram formas
gritantes de exclusão.) A título de exemplo, Elias denuncia o crime de Nabot (1
R 21,1-29); depois, Amos denuncia as injustiças na Samaria (Am 5,11-13), onde um povo explorado favorece
a ganância dos ricos. Nessa linha, prosseguiu Jesus: o culto a Deus não
consiste em ‘ritos exteriores e formais’, mas no amor que gera justiça, honestidade e solidariedade (Mt. 5,23s).
Maltratar a pobreza, subjugar o povo é infidelidade à Aliança; a
responsabilidade ‘social’ visa o bem das ‘pessoas’
Deus nunca se vinga nos ‘indivíduos’, como Jesus lembra no caso do cego (Jo 9,2). Na prática,
a salvação já não diz - genericamente
- respeito à ‘nação’, mas aos indivíduos
da nação ‘toda’. Estes merecem viver a fé em Deus no meio de um povo solidário
e fraterno. No passado, a vigência da Sabedoria substituiu a missão profética;
profetas foram substituídos por ‘mestres’ da lei e por ‘sábios’.
Jesus se tornou modelo, como Paulo lembra: rico, ele se fez pobre para
nos enriquecer por sua pobreza (2 Cor 8,9). Não foi para ser servido que veio,
mas para servir (Mc 10,45). Ninguém é feliz por ser pobre, mas quem se faz
pobre; não é abençoado quem ‘é’ servido, mas quem ‘serve’ (Mc 10,45) (Lc
6,20-21) (cf Lc 1,52s; 4,18; 7,22; 14,21 (14.13); 16.22. (Contexto: cidades
helenísticas.) (Em Mateus, o critério é sempre a atitude ‘ética’ (22,10).
Em seu todo, a Boa Nova não privilegia os que são pobres (Lc. 16,19-31; 19,1-
10). A conversão ao Evangelho não implica, necessariamente, uma dimensão
econômica, mas uma nova avaliação dos
bens: o bem de todos na comunidade
(Atos 4,32). Prevalece a importância, não do ‘poder’, mas do serviço. O grande ‘desafio’ é colocar os
bens a serviço de todos. Sobretudo em Mateus, ricos e pobres têm de
ser discípulos na escola de Cristo: ter alma de pobre, coração acolhedor, ter
fome de justiça, ser artesão de paz, sofrer perseguição.(Mt 5,2-12).
A quem e a que devemos prestar mais atenção? Que lugares e rostos mais cuidado
nos pedem? Há os que não contam muito, pois os ignoramos ou esquecemos.
Dar-lhes atenção há de ser experiência de responsabilidade, de acolhimento e de
encontros. Há pobres e inválidos em uma extrema
precariedade, sem vida digna e sem condições de desenvolver capacidades latentes.
São pessoas sem perspectivas, que não contam, que dificilmente enxergamos e das
quais nada se espera. Seu potencial de trabalho e de marcar presença tendem a
desaparecer. São encapsuladas por invisibilidade.
Podem até sucumbir a doença e morte, enquanto nós nos mantemos à distância.
Assinalam um abismo sem fundo que cobrimos com nosso medo para, por eles, não
sermos contagiados e incomodados, como se quisessem arrastar os que deles se
aproximam. Não raro, nos deixamos intimidar por angústia, impotência e culpa,
temendo horizontes desconhecidos e um desafio pesado demais. Ficamos distantes,
nem ousamos abordá-los.
Porém, bastaria um pouco de coragem e uma ocasião de encontro para
reconhecermos que, como nós, eles têm rosto, voz, dignidade, aspirações e
esperança; enfim, uma história. Isto
nos faria admitir que se trata simplesmente de irmãos nossos. Percebemos que não é tão difícil abrir espaço para
eles. Nosso quadro de referência é limitado, frágil e inseguro. Espera-se de
nós um passo de aproximação, um modo diferente de sentir e de avaliar, pois não
se trata de uma ameaça de agressão.
É preciso evitar o jogo de ignorar para superar nossa indiferença,
acolhendo o percurso do encontro,
deixando-nos envolver pelas circunstâncias. Haverá uma ‘revelação recíproca’,
em que cada um se assusta com as próprias reações, com a capacidade de se
deixar conduzir pelo que se apresenta no momento. Haverá até leveza com riso.
Trata-se de sinais que não enganam, conduzindo-nos a uma nova experiência convivência cristã. Tal aproximação impele os
protagonistas ao diálogo, superando indiferença, resistências ou preconceitos.
Isto nos livra de sofrimento,
mostrando-se indispensável para vivermos bem e convivermos em clima de
fraternidade. Por que aumentar tensões, cultivar distâncias, estreitar
horizontes, resistindo a um gesto de ceder? Caso dermos conta de relativizar
obstáculos, conquistaremos confiança, trocando fragmentos de história entre nós, suavizando laços dolorosos.
Assim, lançamos o fundamento de uma aproximação integradora e solidária.
Passamos a partilhar sentimentos reprimidos, substituindo dores,
resistências e tristezas por simpatia, solidariedade, amizade. Transporemos
abismos, cultivaremos presença, voltaremos a falar e a decidir juntos, ajudando-nos
na construção de um novo projeto. Assim, priorizaremos o outro, sem nos fechar ou isolar em um objetivo ‘pessoal’.
Somos, então, sensibilizados pelo que é prioritário na relação. Quem sabe, é
nessa perspectiva que somos convidados a avaliar a proposta da vivência crista:
opção preferencial pelos pobres e
excluídos.
Nessa categoria cabem muitos, seja no âmbito da vida social e da prática
da fé. Primeiro, os ‘sem’ meios de uma
sobrevivência digna e de uma cidadania justa; segundo, os que não se enquadram
nos critérios da moral burguesa:
homossexuais – casados ou não - descasados e recasados, criminosos,
vítimas de preconceitos, mulheres, etc. Terceiro, os discriminados na religião:
sacerdotes celibatários, padres casados, mulheres em geral. Em clima de
aliança, somos intimados para alcançar o que liberta e libertar e lutar por uma
coletividade fraterna e participativa. A Igreja de Cristo é a Igreja do ‘povo’.
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Frei
Cláudio van Balen
(Fonte:Ph.Demeestère,J´ai vu la misère de mon peuple,
CHRISTUS–
avril 2012, pp 177-186)